quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Exegese da Decadência (Emil Cioran)




“Cada um de nós nasceu com uma dose de pureza, predestinada a ser corrompida pelo comércio com os homens, por esse pecado contra a solidão. Pois cada um de nós faz o impossível para não se ver entregue a si mesmo. O semelhante não é fatalidade, mas tentação de decadência. Incapazes de guardar nossas mãos limpas e nossos corações intactos, chafurdamos sedentos de nojo e entusiastas de pestilência na lama unânime. E quando sonhamos mares convertidos em água benta, é tarde demais para mergulharmos neles, e nossa corrupção demasiado profunda nos impede de afogar-nos ali: o mundo infectou nossa solidão; as marcas dos outros em nós tornam-se indeléveis.

Na escala das criaturas, só o homem pode inspirar um nojo constante. A repugnância que provoca um animal é passageira; não amadurece no pensamento, enquanto que nossos semelhantes inquietam nossas reflexões, infiltram-se no mecanismo de nosso desapego do mundo para nos confirmar em nosso sistema de recusa e de não adesão. Depois de cada conversa, cujo refinamento indica por si só o nível de uma civilização, por que é impossível não sentir saudades do Saara e não invejar as plantas ou os monólogos infinitos da zoologia?

Se com cada palavra obtemos uma vitória sobre o nada, é apenas para melhor sofrer seu domínio. Morremos em proporção às palavras que lançamos em torno de nós... Os que falam não têm segredos. E todos nós falamos; nos traímos, exibimos nosso coração; carrasco do indizível, cada um esforça-se por destruir todos os mistérios, começando pelos seus. E se encontramos os outros, é para aviltar-nos juntos em uma fuga para o vazio, seja no intercâmbio de ideias, nas confissões ou na intrigas. A curiosidade não só provou a primeira queda, como as inúmeras quedas de todos o dias. A vida não é senão esta impaciência de decair, de prostituir as solidões virginais da alma pelo diálogo, negação imemorial e quotidiana do Paraíso. O homem só deveria escutar a si mesmo no êxtase sem fim do Verbo intransmissível, forjar palavras para seus próprios silêncios e acordes audíveis apenas a seus remorsos. Mas ele é o tagarela do universo; fala em nome dos outros; seu eu ama o plural. E o que fala em nome dos outros é sempre impostor. Políticos, reformadores e todos os que reivindicam um pretexto coletivo são trapaceiros. Só a mentira do artista não é total, pois só inventa a si mesmo. Fora do abandono ao incomunicável, da suspensão no meio de nossos arrebatamentos inconsolados e mudos, a vida é apenas um estrondo sobre uma extensão sem coordenadas, e o universo uma geometria que sofre de epilepsia.

(O plural implícito de "se" e o plural confessado do "nós" constituem o refúgio confortável da existência falsa. Só o poeta assume a responsabilidade do "eu", só ele fala em seu próprio nome, só ele tem o direito de fazê-lo. A poesia se degrada quando torna-se permeável à profecia ou à doutrina: a "missão" sufoca o canto, a ideia entrava o voo. O lado "generoso" de Shelley torna caduca a maior parte de sua obra: Shakespeare, felizmente, nunca "serviu" para nada.

O triunfo da não autenticidade tem seu acabamento na atividade filosófica, esta complacência no "se", e na atividade profética[religiosa, moral ou política], esta apoteose do "nós". A definição é a mentira do espírito abstrato; a fórmula inspirada, a mentira do espírito militante: uma definição encontra-se sempre na origem de uma templo; uma fórmula reúne inelutavelmente os fiéis. Assim começam todos os ensinamentos.

Como não se voltar então para a poesia? Ela te- como a vida- a desculpa de não provar nada.)”

(Breviário de Decomposição, pág. 30, ed. Rocco, 2011)


 Interpretação do século XIX da travessia de Caronte, por Alexander Litovchenko




O fazer filosófico de Emil Cioran


Herdeiro da tradição irracionalista, Emil Cioran (1911 – 1995) sugere a impossibilidade de escapar das aflições humanas, visto que não podemos nem afirmar e nem negar a nossa Vontade – a única coisa que restaria, então, seria conviver em um mundo de dor e sem propósito, podendo apenas aceitá-lo ou odiá-lo.

Enfatizando o instinto em detrimento da razão, o filósofo se colocará contra o modo com que é feito o exercício filosófico de seu tempo: um saber artificial e frio, que não toca nas aflições humanas, indiferente ao Homem e apático ao mundo, que suprime pensamentos mais elevados em prol de uma produção fechada em si mesma. MAIS





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